sábado, 23 de janeiro de 2010

MINHA ESCOLA

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


(Ascenso Ferreira)


Publicado no livro Catimbó (1927).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O PAPEL DA ESCOLA NA HUMANIZAÇÃO DAS PESSOAS

A importância de repensar o papel da escola enquanto instituição responsável pelos processos formativos destinados às maiorias sociais surge, atualmente, como uma condição fundamental para que se possa reorientá-la na direção dos interesses, anseios, desejos e realidade sociocultural das classes populares.
Tal necessidade se justifica pelo fato de a escola não responder, tanto na sua concepção quanto na sua organização, às expectativas que as classes populares da sociedade esperam dela, que é contribuir de forma substantiva para o seu êxito social. Essas questões devem ser consideradas para que se repense a escola no que diz respeito ao seu papel histórico, à sua meta educacional e à sua finalidade, enquanto ofertante de processos educacionais dirigidos às populações historicamente excluídas da sociedade.
Em conversa sobre o papel e o futuro da escola, Miguel Arroyo afirma que
A escola básica se construiu de maneira muito descaracterizada, sempre foi uma escola para algo, uma escola para tirar os analfabetos do analfabetismo, ou para preparar o cidadão para a República, ou para o emprego, ou para o vestibular. A escola e a educação básica tiveram um caráter propedêutico, preparatório: preparatório para a próxima série, para o próximo nível, preparatório para a sobrevivência (2003, p. 128).
Por essa razão, a escola deve ser reconstruída na perspectiva de se transformar num ambiente formativo de processos socioeducacionais capazes de contribuir significativamente na formação humana dos sujeitos, de modo pleno e integral, e não se limitar a ser um espaço apenas para a escolaridade das pessoas. Reduzir a escola a uma agência de transmissão de saberes formais, preocupada exclusivamente com os conhecimentos instrumentais, que são aqueles organizados pelas diversas áreas de conhecimentos (matemática, língua portuguesa, geografia, história, entre outras), é desvirtuar a verdadeira função social, pedagógica e política da escola.
É certo que esses conhecimentos são fundamentais para a construção das competências e habilidades dos sujeitos, contudo, são insuficientes e limitados, quando se pretende a formação integral dos seres humanos. Para isso, a escola deve desenvolver a sua função socioeducativa, articulando os conhecimentos instrumentais com os conhecimentos educativos e os conhecimentos organizativos, como defende Souza. São conhecimentos educativos aqueles que vão possibilitar aos sujeitos a construção de sua identidade enquanto ser, enquanto pessoa que se constitui cidadão/cidadã com capacidades de viver/conviver no meio social; os conhecimentos organizativos vão contribuir para a ação/intervenção, individual e coletiva, na sociedade.
Os seres humanos constroem sua identidade pessoal e social em contextos históricos e culturais, a partir de processos relacionais consigo mesmos, com os outros e com o mundo. É nessa relação interativa e dialógica que os seres humanos se diferenciam dos outros animais e é, exatamente por isso, que a escola deve ser um espaço de confrontação e diálogo de saberes, sejam eles saberes formais, informais, particulares, populares, científicos. É através desse diálogo que novos saberes serão construídos. Mas esses novos saberes deverão ter um sentido, uma validade, uma importância subjetiva e objetiva para a vida das pessoas, para que cada cidadão e cada cidadã possam ter maior capacidade e poder de intervenção na sociedade e, consequentemente, torná-la menos desumanizante e mais humanizada.
Considerando o contexto e a perspectiva que se pretende para a escola, enquanto propulsora de processos educativos capazes de contribuir para o sucesso escolar e social das camadas populares da sociedade e de sua permanente humanização, Souza afirma que se a escola pretende garantir as finalidades da educação básica, precisa desenvolver uma “educação como processos e experiências de humanização do ser humano, incluindo, portanto, as questões do trabalho, da cidadania, do respeito aos outros e às outras, o desenvolvimento cultural de todas em todos os quadrantes da terra” (2004, p. 73).
Pode ser a partir desta proposição que se construam os fios que vão tecendo o caminho que rompa com o atual modelo educacional e faça surgir uma escola que em lugar de ter caráter meramente escolarizante, seja capaz de construir novas relações humanas e contribuir para os processos de humanização. Uma escola que compreenda que a construção das identidades pessoais e coletivas exige o reconhecimento e a valorização das culturas locais, regionais e universais; uma escola que assegure uma convivência democrática capaz de comportar as diversas formas de convivência de classe, de etnia, de gênero, de credo, de idade, de linguagem, de opção sexual, de ideologia. Mas, ao mesmo tempo, uma escola que rompa “radicalmente com as formas de dominação e exploração ideológicas e históricas da vida humana, como, também, despoluírem-se dos ranços preconceituosos e discriminatórios que pregam e impõem uma unidade que não admite nem reconhece a presença das diferenças”. (MENDONÇA, 2006, p. 111)
A superação desse modelo de escola exige, além de uma grande reestruturação do sistema econômico e social do país e de novas políticas sociais que estejam a favor das maiorias sociais excluídas dos direitos básicos e fundamentais, uma mudança de mentalidade que reconheça o ser humano como sendo a razão central de qualquer tipo de transformação e desenvolvimento social. De acordo com Lima, “a democracia, a solidariedade e o bem comum continuam a representar os maiores problemas da escola pública” (2006, p. 26), mas é exatamente porque o aperfeiçoamento social, a democracia, o bem comum e a solidariedade são os maiores bens na construção da humanização dos seres humanos.

(Nelino Azevedo de Mendonça)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO, Miguel. A escola é importantíssima na lógica do direito à educação básica.
In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). A escola tem futuro? Rio de janeiro:
DP&A, 2003.
FREIRE, Paulo. Política e Educação: ensaios. São Paulo, Cortez, 2003.
LIMA, Licínio C. Escolarizando para uma educação crítica: a reinvenção das escolas como organizações democráticas. In: TEODORO, Antônio. TORRES, Carlos Alberto. (orgs.). Educação crítica e utopia: perspectiva para o século XXI. São Paulo, Cortez, 2006.
MENDONÇA, Nelino Azevedo de. A multiculturalidade como processo humanizador na pedagogia de Paulo Freire. In: CONCEIÇÃO, Maia Francisca da; NETO, José Francisco de Melo (orgs.). Aprimorando-se com Paulo Freire em dialogicidade. Recife, Bagaço – Centro Paulo Freire, 2006.
SOUZA, João Francisco de. Ruptura epistemológica e organizacional da educação básica em relação à educação superior. Revista pernambucana de educação popular e de educação de adultos – fênix. Pernambuco. NUPEP/ UFPE, nº. 4, 2004.

A DIMENSÃO UTILITARISTA E DESUMANIZANTE DA ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL: CONCEPÇÃO E PERSPECTIVA

A perspectiva utilitarista da alfabetização funcional irrompeu um processo educativo que se estabeleceu na sala de aula pela supervalorização dos conteúdos instrumentais  (são aqueles organizados pelas diversas áreas de conhecimentos: matemática, língua portuguesa, geografia, história, entre outras) como forma de enfrentamento e respostas às demandas sociais impostas por uma sociedade marcada pela escrita.
Este aspecto impulsionou muitos projetos e programas de alfabetização de jovens e adultos a desenvolverem intervenções educativas caracterizadas, fundamentalmente, pela concepção funcional da educação, buscando adequar as pessoas usuárias desses serviços às situações práticas e imediatas da sociedade. Dessa maneira, a ênfase na leitura e na escrita para que os/as alfabetizandos/das aprendam em um curto tempo a assinarem os seus nomes e dominarem questões básicas, como reconhecer nomes de ruas, pequenos avisos, itinerários de ônibus, ou seja, situações imediatas para a funcionalidade do seu dia a dia, tornou-se objetivo central de tais processos de alfabetização, numa clara demonstração de reducionismo dos processos educativos.
Nesse sentido, a alfabetização funcional, ao reduzir o processo educativo a uma perspectiva utilitarista, reduz também o sentido do ser humano a uma condição de objeto, pois não reconhece, nesse caso, as potencialidades e dimensões humanas que confirmam e faz crescer a própria humanidade das pessoas.
O maior sentido de um processo educativo é contribuir para a permanente construção da humanidade dos seres humanos, o que será possível na medida em que o mesmo reconheça o ser humano na sua integralidade objetiva e subjetiva e, ao mesmo tempo, situado histórica e culturalmente no mundo e com o mundo.
Possivelmente esteja localizado nesta questão o maior problema da alfabetização funcional, que é exatamente tomar o/a alfabetizando/a como algo coisificado que deve ser adaptado ao meio social, na medida em que receba mecanicamente os conteúdos necessários para que possa responder minimamente às exigências cotidianas impostas pela sociedade.
Um outro aspecto que geralmente acompanha e caracteriza a alfabetização funcional é o de assumir uma certa neutralidade em seu ato educativo, querendo-se asséptica em relação às questões políticas, como se fosse possível a neutralidade nas relações humanas.
A questão da neutralidade assumida por muitos processos educativos, “esconde” em si mesma uma posição política favorável ao sistema dominante e a sua preservação. Essa afirmação discursiva em nome da neutralidade assume na prática pedagógica uma intervenção educativa bancária que se vê no repasse dos conteúdos aos/às educandos/as a sua missão, para que os/as mesmos/mesmas adquiram habilidades elementares frente ao mundo letrado.
No entanto, programas de alfabetização de jovens e adultos emergiram em grande escala, principalmente nos países de terceiro mundo, marcadamente caracterizados por uma concepção funcional de ensino. Essa dimensão utilitarista, funcional, predominante em muitos programas de alfabetização de jovens e adultos, vem se apoiando no argumento de que é preciso alfabetizar funcionalmente a população de analfabetos, para que a mesma possa minimamente atender às necessidades imediatas da sociedade moderna e, dessa maneira, contribuir para o desenvolvimento econômico de sua nação. Dessa forma,  a alfabetização funcional corrobora a natureza utilitarista da educação, sua prática pedagógica mecânica e conteudista, portanto bancária, sua opção política reacionária e supostamente neutra e sua perspectiva reducionista das dimensões e potencialidades humanas.

(Nelino Azevedo de Mendonça)