quinta-feira, 21 de maio de 2015

DIALOGAR COM AS INCERTEZAS, RELIGAR O FRAGMENTADO

Não ter certeza das coisas é algo irremediavelmente humano. A certeza é apenas um modo de acreditar que é o pensamento lógico que detém em si mesmo a verdade das coisas. Mas a verdade não é algo que se aprisiona num modo de pensar racionalista contido numa estrutura lógica. A verdade detém em si uma relativização e uma tensão permanente entre a dimensão simbólica e a dimensão racional. Um dos nossos maiores desafios, se quisermos saídas para situações que a priori parecem não ter saída, fundamentalmente questões emergentes que afloram na sociedade e geram crises degradantes da condição humana, é nos tornarmos capazes da religação do que  vem sendo fragmentado e re/aprender o diálogo das certezas com as incertezas.
Pode parecer ingênuo falar de uma “lógica da cárdia” para expressar uma racionalidade do coração, mas foi a racionalização da via cerebral que se estabelecendo na superfície das coisas fragmentou o mundo e o ser humano. Maria Zambrano, uma importante pensadora espanhola do século passado, fala-nos ricamente das “metáforas do coração” para nos fazer enxergar o coração como uma via lógica possível, de dimensão metafórica e polissêmica, como um modo de expressar uma racionalidade e enxergar o que habita no mais profundo do humano, lugar onde a racionalidade científica não pode alcançar. Vale aqui a reflexão: o que mais nos importa, são as coisas ou os seres humanos?
O pensamento iluminista, predominante nos últimos quatro séculos, impôs uma devastadora desqualificação do simbólico, por tal razão, a definição animal racional, para designar o ser humano, foi validada e assumida por uma grande maioria como a melhor conceituação para nos autodenominar. A máxima cartesiana “penso, logo existo” sacramentou para a modernidade a episteme como um modo único de pensar e, desde então, os últimos séculos foram guiados pela razão científica, o que a tornou uma religião quase inquestionável.
A questão, nisso tudo, é que assistimos, quase que passivamente, ao gradativo rompimento cultural entre a cultura científica e a cultura das humanidades. De acordo com Morin, “A cultura científica é uma cultura de especialização, que tende a se fechar em si mesma. Sua linguagem torna-se esotérica, não somente para o comum dos cidadãos, mas também o especialista de outra disciplina. O saber em si mesmo cresce de forma exponencial e não pode ser abarcado por nenhum espírito humano”[1].
Perdemos, com isso, a nossa capacidade de relação consigo mesmo, pois nos distanciamos imensamente da condição de reflexividade tão necessária para mergulhamos em nós mesmos, e, no entanto, nos acercamos, cada vez mais, de mecanismos e instrumentos tão maravilhosos, doados pela ciência, que nos ensinam a entendermos, fantasticamente, sobre coisas e objetos, muito embora nos coloquem numa condição, cada vez mais, de sabermos menos sobre o ser humano.
Todavia, não se defende a negação da racionalidade no processo de construção de uma sociedade mais humana, firmada nas dimensões da curiosidade, da afetividade, da amorosidade e da paixão. O que se deve evitar é a transformação da racionalidade em racionalização. A racionalidade é dialógica, aberta ao debate com as instâncias do saber do senso comum; reconhecedora da subjetividade, das possibilidades de erros e das dimensões afetivas. É também autorreflexiva. A racionalidade não é algo privado apenas aos técnicos e especialistas. 
Sócrates (470 ou 469 / 399 a.C) reconhecia a racionalidade na máxima “conhece-te a ti mesmo – gnôthi seautón”, que expressava a dimensão da razão, se esta estivesse intimamente articulada com o “cuidado de si mesmo – epiméleia heautoû”, que tentamos resumir precariamente aqui como a dimensão da subjetividade e da espiritualidade humana (FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010).
Por outro lado, no dizer de Morin, “A racionalização crê-se racional, porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta. A racionalização nutre-se das mesmas fontes que a racionalidade, mas constitui uma das formas mais poderosas de erros e ilusões. Dessa maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora”[2]. A racionalização, portanto, é uma porta fechada a qualquer possibilidade de re/conhecimento do humano, na medida em que esgarça o conhecimento como se fosse uma colcha de retalhos e desconsidera as dimensões subjetivas dos sujeitos, portanto, incapaz de encontrar soluções sustentáveis para os problemas da sociedade e dos próprios seres humanos.
Mais do que qualquer outro momento na história da humanidade, é fundamental e urgente entendermos que as nossas possibilidades de enfrentarmos os complexos desafios do século XXI, com chances de alternativas viáveis à afirmação de uma sociedade sustentável, mais justa e mais humana, é assumirmos, na prática, uma necessária atitude de mudança e reaprendizagem do pensamento, reconhecendo que não teremos saídas que não sejam pelo princípio da complexidade, pela religação do fragmentado, pelo diálogo entre os diferentes e pela reconciliação entre o todo e as partes. O termo “complexo” vem do latim complexus “o que envolve, que rodeia” e tem na sua origem o sentido de abraçar, rodear, tecer, entrelaçar. Ao contrário de significar algo difícil, complicado, a ideia da complexidade indica o sentido daquilo “que é tecido junto”.
Desse modo, podemos interromper a disjunção que cotidianamente executamos e gera a separação que adoece o planeta, que separa o que naturalmente não pode ser separado. Pois é assim que agimos: separando e adoecendo o planeta, seja em nossos ambientes de trabalho, nos gabinetes e escritórios, ou nas coisas que fazemos em qualquer quadrante deste planeta. Tudo isso soa como se estivéssemos galopando a passos largos numa grande saga da fragmentação, com a promessa de um grande prêmio para quem cumprir o seu percurso. 
Carecemos de uma utopia que nos alimente o fogo da esperança e a crença da transformação. Somente aqueles que se libertarem da racionalização tecnicista e utilitária poderão ser utópicos e somente os utópicos serão capazes de tornar esse planeta um ambiente de relações menos problemáticas e convivências mais agradáveis e mais felizes. É disso que precisa uma verdadeira cultura de paz. Aqueles que veem nestas palavras apenas mais uma alegoria do blá-blá-blá têm o coração tomado pela aridez do tecnicismo utilitarista e, certamente, amam menos a si mesmos a aos outros. Mas do que nunca devemos ser utópicos, aquela utopia afirmada por Paulo Freire, algo que nos coloca no horizonte do possível, do factível, do realizável; uma utopia que não pode ser compreendida como idealização do inatingível, mas como denúncia dos processos desumanizantes e anúncio das formas de humanização.
Vivemos um momento de globalização que, celeremente, torna-se uma regra geral. O desafio da globalização é que entramos num processo irreversível de acontecimentos radicalmente articulados e definidores de dimensões planetárias concernentes ao mercado, ao sistema financeiro, à informação, à tecnologia e à reinvenção de novos processos identitários, mas também às formas de gestão das políticas responsáveis pelos territórios urbanos, caracterizados pelas idiossincrasias dos espaços locais, onde se dão os confrontos das culturas e das diferenças sociais. Zygmunt Bauman afirma que “A globalização tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo. (...) O que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejável e cruel”. O mais preocupante para a maioria das populações e para os gestores de grandes e médios centros urbanos é que, no dizer de Bauman, “Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social”[3].
A fragmentação do conhecimento, instituindo a ultraespecialização como panaceia para todos os problemas, nada mais fez do que gerar uma inteligência tecnocrática incapaz de enxergar a si mesma e, por isso, perdeu a noção do todo. Como afirma Morin: “Infelizmente, quanto mais temos conhecimentos especializados e limitados, mais temos ideias globais absolutamente estúpidas sobre a política, o amor ou a vida”[4].
A inteligência tecnocrática se expandiu para todas as áreas. Na medida em que a política engendrou, mais intensamente, a dimensão utilitária do tecnicismo, maior se tornou a sua incapacidade de resolução dos problemas, pois o tecnicismo que permeou a ação política criou um movimento de regressão de sua competência democrática. Aliás, quanto mais a fragmentação do conhecimento foi incorporada pelos sistemas e a supervalorização das expertises foi defendida como condição sine qua non para encontrar as soluções e resolver os problemas em todos os campos da sociedade, tanto mais têm regredido os espaços da democracia e, paradoxalmente, a nossa capacidade de encontrarmos saídas para as questões maiores que afligem a sociedade e desumanizam os seres humanos.
Cada vez mais, é reforçado o pensamento de que necessitamos de um conhecimento hiperespecializado para resolvermos os problemas que enfrentamos nos mais diversos contextos do nosso cotidiano. Desse modo, temos a sensação de que estamos muito preparados para enfrentarmos as nossas problemáticas e darmos contas de suas respectivas resoluções. O sentimento de que somos muito bons para resolvermos questões pontuais, específicas, que geram crises circunstanciais e exigem da gente um conhecimento hiperespecializado parece um ledo engano.
Isso tudo tem muito mais a ver com a história de jogar o lixo para debaixo do tapete. Estamos cada vez mais afundando o planeta numa crise infindável, tanto socioambiental quanto ética, mas continuamos abrindo garrafas de vinho para comemorarmos a solução do problema da esquina que nossa tão especializada competência conseguiu sanar, e nos autoelogiamos como salvacionistas da Terra. Como afirma Edgar Morin, “contrariamente à opinião hoje difundida, o desenvolvimento das aptidões gerais da mente permite o melhor desenvolvimento das competências particulares ou especializadas. Quanto mais desenvolvida é a inteligência geral, maior é sua capacidade de tratar problemas especiais”[5].
A fragmentação do conhecimento e o esgarçamento das relações nos atingem diretamente, e de maneira danosa, em todos os momentos de nossas vidas. Como resultado, mergulhamos num processo de desqualificação do humano e estamos, cada vez mais, nos coisificando. Como a escolha feita pelo personagem Neo, no filme Matrix, ao optar pela pílula vermelha, é mais que urgente apertar o sinal vermelho que nos fará reabrir possibilidades para nos reconhecermos no nosso mundo interior e no mundo social, como sujeitos de história, de cultura, de afeto e de espiritualidade.
O esgarçamento e a fragmentação do conhecimento, resultando num processo de exigência da superespecialização, estão fazendo com que percamos, aceleradamente, o senso de equipe no cotidiano de nossos trabalhos. O que fazemos é o mais importante porque tem início e fim em si mesmo, é desse modo que vemos a nossa ação e o resultado do que produzimos. Somos muito mais uma babel que perdeu o sentido de unidade na diversidade e, com isso, perdemos também o sentido de nossa tarefa no coletivo. A competividade de um contra o outro ganha mais espaço, e tudo vira um salve-se quem puder. A nossa formação educacional e, mais fortemente, a nossa formação profissional nos ensinam a competir contra o outro. Isso tudo tem gerado uma deformação do verdadeiro papel social da educação e de nosso papel político-social na sociedade. Por essa razão, a nossa maior urgência, talvez seja repensar as políticas e os sistemas educacionais, perguntando-nos que educação estamos fazendo e qual educação queremos e precisamos, se, acaso, ainda desejamos, muito mais do que viver, existir neste planeta.


(Nelino Azevedo de Mendonça)


[1] MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2013. p. 61
[2] MORIN, Edgar.  Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011. P. 22
[3] BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 8.
[4] MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2013. p. 67.
[5] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 21,22

sábado, 23 de janeiro de 2010

MINHA ESCOLA

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


(Ascenso Ferreira)


Publicado no livro Catimbó (1927).
In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O PAPEL DA ESCOLA NA HUMANIZAÇÃO DAS PESSOAS

A importância de repensar o papel da escola enquanto instituição responsável pelos processos formativos destinados às maiorias sociais surge, atualmente, como uma condição fundamental para que se possa reorientá-la na direção dos interesses, anseios, desejos e realidade sociocultural das classes populares.
Tal necessidade se justifica pelo fato de a escola não responder, tanto na sua concepção quanto na sua organização, às expectativas que as classes populares da sociedade esperam dela, que é contribuir de forma substantiva para o seu êxito social. Essas questões devem ser consideradas para que se repense a escola no que diz respeito ao seu papel histórico, à sua meta educacional e à sua finalidade, enquanto ofertante de processos educacionais dirigidos às populações historicamente excluídas da sociedade.
Em conversa sobre o papel e o futuro da escola, Miguel Arroyo afirma que
A escola básica se construiu de maneira muito descaracterizada, sempre foi uma escola para algo, uma escola para tirar os analfabetos do analfabetismo, ou para preparar o cidadão para a República, ou para o emprego, ou para o vestibular. A escola e a educação básica tiveram um caráter propedêutico, preparatório: preparatório para a próxima série, para o próximo nível, preparatório para a sobrevivência (2003, p. 128).
Por essa razão, a escola deve ser reconstruída na perspectiva de se transformar num ambiente formativo de processos socioeducacionais capazes de contribuir significativamente na formação humana dos sujeitos, de modo pleno e integral, e não se limitar a ser um espaço apenas para a escolaridade das pessoas. Reduzir a escola a uma agência de transmissão de saberes formais, preocupada exclusivamente com os conhecimentos instrumentais, que são aqueles organizados pelas diversas áreas de conhecimentos (matemática, língua portuguesa, geografia, história, entre outras), é desvirtuar a verdadeira função social, pedagógica e política da escola.
É certo que esses conhecimentos são fundamentais para a construção das competências e habilidades dos sujeitos, contudo, são insuficientes e limitados, quando se pretende a formação integral dos seres humanos. Para isso, a escola deve desenvolver a sua função socioeducativa, articulando os conhecimentos instrumentais com os conhecimentos educativos e os conhecimentos organizativos, como defende Souza. São conhecimentos educativos aqueles que vão possibilitar aos sujeitos a construção de sua identidade enquanto ser, enquanto pessoa que se constitui cidadão/cidadã com capacidades de viver/conviver no meio social; os conhecimentos organizativos vão contribuir para a ação/intervenção, individual e coletiva, na sociedade.
Os seres humanos constroem sua identidade pessoal e social em contextos históricos e culturais, a partir de processos relacionais consigo mesmos, com os outros e com o mundo. É nessa relação interativa e dialógica que os seres humanos se diferenciam dos outros animais e é, exatamente por isso, que a escola deve ser um espaço de confrontação e diálogo de saberes, sejam eles saberes formais, informais, particulares, populares, científicos. É através desse diálogo que novos saberes serão construídos. Mas esses novos saberes deverão ter um sentido, uma validade, uma importância subjetiva e objetiva para a vida das pessoas, para que cada cidadão e cada cidadã possam ter maior capacidade e poder de intervenção na sociedade e, consequentemente, torná-la menos desumanizante e mais humanizada.
Considerando o contexto e a perspectiva que se pretende para a escola, enquanto propulsora de processos educativos capazes de contribuir para o sucesso escolar e social das camadas populares da sociedade e de sua permanente humanização, Souza afirma que se a escola pretende garantir as finalidades da educação básica, precisa desenvolver uma “educação como processos e experiências de humanização do ser humano, incluindo, portanto, as questões do trabalho, da cidadania, do respeito aos outros e às outras, o desenvolvimento cultural de todas em todos os quadrantes da terra” (2004, p. 73).
Pode ser a partir desta proposição que se construam os fios que vão tecendo o caminho que rompa com o atual modelo educacional e faça surgir uma escola que em lugar de ter caráter meramente escolarizante, seja capaz de construir novas relações humanas e contribuir para os processos de humanização. Uma escola que compreenda que a construção das identidades pessoais e coletivas exige o reconhecimento e a valorização das culturas locais, regionais e universais; uma escola que assegure uma convivência democrática capaz de comportar as diversas formas de convivência de classe, de etnia, de gênero, de credo, de idade, de linguagem, de opção sexual, de ideologia. Mas, ao mesmo tempo, uma escola que rompa “radicalmente com as formas de dominação e exploração ideológicas e históricas da vida humana, como, também, despoluírem-se dos ranços preconceituosos e discriminatórios que pregam e impõem uma unidade que não admite nem reconhece a presença das diferenças”. (MENDONÇA, 2006, p. 111)
A superação desse modelo de escola exige, além de uma grande reestruturação do sistema econômico e social do país e de novas políticas sociais que estejam a favor das maiorias sociais excluídas dos direitos básicos e fundamentais, uma mudança de mentalidade que reconheça o ser humano como sendo a razão central de qualquer tipo de transformação e desenvolvimento social. De acordo com Lima, “a democracia, a solidariedade e o bem comum continuam a representar os maiores problemas da escola pública” (2006, p. 26), mas é exatamente porque o aperfeiçoamento social, a democracia, o bem comum e a solidariedade são os maiores bens na construção da humanização dos seres humanos.

(Nelino Azevedo de Mendonça)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO, Miguel. A escola é importantíssima na lógica do direito à educação básica.
In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). A escola tem futuro? Rio de janeiro:
DP&A, 2003.
FREIRE, Paulo. Política e Educação: ensaios. São Paulo, Cortez, 2003.
LIMA, Licínio C. Escolarizando para uma educação crítica: a reinvenção das escolas como organizações democráticas. In: TEODORO, Antônio. TORRES, Carlos Alberto. (orgs.). Educação crítica e utopia: perspectiva para o século XXI. São Paulo, Cortez, 2006.
MENDONÇA, Nelino Azevedo de. A multiculturalidade como processo humanizador na pedagogia de Paulo Freire. In: CONCEIÇÃO, Maia Francisca da; NETO, José Francisco de Melo (orgs.). Aprimorando-se com Paulo Freire em dialogicidade. Recife, Bagaço – Centro Paulo Freire, 2006.
SOUZA, João Francisco de. Ruptura epistemológica e organizacional da educação básica em relação à educação superior. Revista pernambucana de educação popular e de educação de adultos – fênix. Pernambuco. NUPEP/ UFPE, nº. 4, 2004.

A DIMENSÃO UTILITARISTA E DESUMANIZANTE DA ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL: CONCEPÇÃO E PERSPECTIVA

A perspectiva utilitarista da alfabetização funcional irrompeu um processo educativo que se estabeleceu na sala de aula pela supervalorização dos conteúdos instrumentais  (são aqueles organizados pelas diversas áreas de conhecimentos: matemática, língua portuguesa, geografia, história, entre outras) como forma de enfrentamento e respostas às demandas sociais impostas por uma sociedade marcada pela escrita.
Este aspecto impulsionou muitos projetos e programas de alfabetização de jovens e adultos a desenvolverem intervenções educativas caracterizadas, fundamentalmente, pela concepção funcional da educação, buscando adequar as pessoas usuárias desses serviços às situações práticas e imediatas da sociedade. Dessa maneira, a ênfase na leitura e na escrita para que os/as alfabetizandos/das aprendam em um curto tempo a assinarem os seus nomes e dominarem questões básicas, como reconhecer nomes de ruas, pequenos avisos, itinerários de ônibus, ou seja, situações imediatas para a funcionalidade do seu dia a dia, tornou-se objetivo central de tais processos de alfabetização, numa clara demonstração de reducionismo dos processos educativos.
Nesse sentido, a alfabetização funcional, ao reduzir o processo educativo a uma perspectiva utilitarista, reduz também o sentido do ser humano a uma condição de objeto, pois não reconhece, nesse caso, as potencialidades e dimensões humanas que confirmam e faz crescer a própria humanidade das pessoas.
O maior sentido de um processo educativo é contribuir para a permanente construção da humanidade dos seres humanos, o que será possível na medida em que o mesmo reconheça o ser humano na sua integralidade objetiva e subjetiva e, ao mesmo tempo, situado histórica e culturalmente no mundo e com o mundo.
Possivelmente esteja localizado nesta questão o maior problema da alfabetização funcional, que é exatamente tomar o/a alfabetizando/a como algo coisificado que deve ser adaptado ao meio social, na medida em que receba mecanicamente os conteúdos necessários para que possa responder minimamente às exigências cotidianas impostas pela sociedade.
Um outro aspecto que geralmente acompanha e caracteriza a alfabetização funcional é o de assumir uma certa neutralidade em seu ato educativo, querendo-se asséptica em relação às questões políticas, como se fosse possível a neutralidade nas relações humanas.
A questão da neutralidade assumida por muitos processos educativos, “esconde” em si mesma uma posição política favorável ao sistema dominante e a sua preservação. Essa afirmação discursiva em nome da neutralidade assume na prática pedagógica uma intervenção educativa bancária que se vê no repasse dos conteúdos aos/às educandos/as a sua missão, para que os/as mesmos/mesmas adquiram habilidades elementares frente ao mundo letrado.
No entanto, programas de alfabetização de jovens e adultos emergiram em grande escala, principalmente nos países de terceiro mundo, marcadamente caracterizados por uma concepção funcional de ensino. Essa dimensão utilitarista, funcional, predominante em muitos programas de alfabetização de jovens e adultos, vem se apoiando no argumento de que é preciso alfabetizar funcionalmente a população de analfabetos, para que a mesma possa minimamente atender às necessidades imediatas da sociedade moderna e, dessa maneira, contribuir para o desenvolvimento econômico de sua nação. Dessa forma,  a alfabetização funcional corrobora a natureza utilitarista da educação, sua prática pedagógica mecânica e conteudista, portanto bancária, sua opção política reacionária e supostamente neutra e sua perspectiva reducionista das dimensões e potencialidades humanas.

(Nelino Azevedo de Mendonça)