Não ter certeza das coisas é algo irremediavelmente humano. A
certeza é apenas um modo de acreditar que é o pensamento lógico que detém em si
mesmo a verdade das coisas. Mas a verdade não é algo que se aprisiona num modo
de pensar racionalista contido numa estrutura lógica. A verdade detém em si uma
relativização e uma tensão permanente entre a dimensão simbólica e a dimensão
racional. Um dos nossos maiores desafios, se quisermos saídas para situações
que a priori parecem não ter saída,
fundamentalmente questões emergentes que afloram na sociedade e geram crises
degradantes da condição humana, é nos tornarmos capazes da religação do
que vem sendo fragmentado e re/aprender o
diálogo das certezas com as incertezas.
Pode parecer ingênuo falar de uma “lógica da cárdia” para
expressar uma racionalidade do coração, mas foi a racionalização da via
cerebral que se estabelecendo na superfície das coisas fragmentou o mundo e o
ser humano. Maria Zambrano, uma importante pensadora espanhola do século
passado, fala-nos ricamente das “metáforas do coração” para nos fazer enxergar
o coração como uma via lógica possível, de dimensão metafórica e polissêmica,
como um modo de expressar uma racionalidade e enxergar o que habita no mais
profundo do humano, lugar onde a racionalidade científica não pode alcançar.
Vale aqui a reflexão: o que mais nos importa, são as coisas ou os seres
humanos?
O pensamento iluminista, predominante nos últimos quatro
séculos, impôs uma devastadora desqualificação do simbólico, por tal razão, a
definição animal racional, para
designar o ser humano, foi validada e assumida por uma grande maioria como a
melhor conceituação para nos autodenominar. A máxima cartesiana “penso, logo
existo” sacramentou para a modernidade a episteme como um modo único de pensar
e, desde então, os últimos séculos foram guiados pela razão científica, o que a
tornou uma religião quase inquestionável.
A questão, nisso tudo, é que assistimos, quase que
passivamente, ao gradativo rompimento cultural entre a cultura científica e a
cultura das humanidades. De acordo com Morin, “A cultura científica é uma
cultura de especialização, que tende a se fechar em si mesma. Sua linguagem
torna-se esotérica, não somente para o comum dos cidadãos, mas também o
especialista de outra disciplina. O saber em si mesmo cresce de forma
exponencial e não pode ser abarcado por nenhum espírito humano”[1].
Perdemos, com isso, a nossa capacidade de relação consigo mesmo, pois nos distanciamos
imensamente da condição de reflexividade tão necessária para mergulhamos em nós
mesmos, e, no entanto, nos acercamos, cada vez mais, de mecanismos e
instrumentos tão maravilhosos, doados pela ciência, que nos ensinam a
entendermos, fantasticamente, sobre coisas e objetos, muito embora nos coloquem
numa condição, cada vez mais, de sabermos menos sobre o ser humano.
Todavia, não se defende a negação da racionalidade no
processo de construção de uma sociedade mais humana, firmada nas dimensões da
curiosidade, da afetividade, da amorosidade e da paixão. O que se deve evitar é
a transformação da racionalidade em racionalização. A
racionalidade é dialógica, aberta ao debate com as instâncias do saber do senso
comum; reconhecedora da subjetividade, das possibilidades de erros e das
dimensões afetivas. É também autorreflexiva. A racionalidade não é algo privado
apenas aos técnicos e especialistas.
Sócrates (470 ou 469 / 399 a.C) reconhecia a racionalidade na máxima “conhece-te
a ti mesmo – gnôthi seautón”, que expressava a dimensão da razão, se esta
estivesse intimamente articulada com o “cuidado
de si mesmo – epiméleia heautoû”, que tentamos resumir precariamente aqui como a dimensão
da subjetividade e da espiritualidade humana (FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010).
Por outro lado, no dizer de Morin, “A racionalização crê-se
racional, porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução
ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à
contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada,
a racionalidade é aberta. A racionalização nutre-se das mesmas fontes que a
racionalidade, mas constitui uma das formas mais poderosas de erros e ilusões.
Dessa maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista
para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora”[2].
A racionalização, portanto, é uma porta fechada a qualquer possibilidade de
re/conhecimento do humano, na medida em que esgarça o conhecimento como se
fosse uma colcha de retalhos e desconsidera as dimensões subjetivas dos
sujeitos, portanto, incapaz de encontrar soluções sustentáveis
para os problemas da sociedade e dos próprios seres humanos.
Mais do que qualquer outro momento na história da humanidade,
é fundamental e urgente entendermos que as nossas possibilidades de
enfrentarmos os complexos desafios do século XXI, com chances de alternativas
viáveis à afirmação de uma sociedade sustentável, mais justa e mais humana, é
assumirmos, na prática, uma necessária atitude de mudança e reaprendizagem do
pensamento, reconhecendo que não teremos saídas que não sejam pelo princípio da
complexidade, pela religação do fragmentado, pelo diálogo entre os diferentes e
pela reconciliação entre o todo e as partes. O termo “complexo” vem do latim complexus “o que envolve, que rodeia” e
tem na sua origem o sentido de abraçar, rodear, tecer, entrelaçar. Ao contrário
de significar algo difícil, complicado, a ideia da complexidade indica o
sentido daquilo “que é tecido junto”.
Desse modo, podemos interromper a disjunção que
cotidianamente executamos e gera a separação que adoece o planeta, que separa o
que naturalmente não pode ser separado. Pois é assim que agimos: separando e
adoecendo o planeta, seja em nossos ambientes de trabalho, nos gabinetes e
escritórios, ou nas coisas que fazemos em qualquer quadrante deste planeta.
Tudo isso soa como se estivéssemos galopando a passos largos numa grande saga
da fragmentação, com a promessa de um grande prêmio para quem cumprir o seu
percurso.
Carecemos de uma utopia que nos alimente o fogo da esperança
e a crença da transformação. Somente aqueles que se libertarem da
racionalização tecnicista e utilitária poderão ser utópicos e somente os
utópicos serão capazes de tornar esse planeta um ambiente de relações menos
problemáticas e convivências mais agradáveis e mais felizes. É disso que
precisa uma verdadeira cultura de paz. Aqueles que veem nestas palavras apenas
mais uma alegoria do blá-blá-blá têm o coração tomado pela aridez do tecnicismo
utilitarista e, certamente, amam menos a si mesmos a aos outros. Mas do que
nunca devemos ser utópicos, aquela utopia afirmada por Paulo Freire, algo que
nos coloca no horizonte do possível, do factível, do realizável; uma utopia que
não pode ser compreendida como idealização do inatingível, mas como denúncia
dos processos desumanizantes e anúncio das formas de humanização.
Vivemos um momento de globalização que, celeremente, torna-se
uma regra geral. O desafio da globalização é que entramos num processo
irreversível de acontecimentos radicalmente articulados e definidores de
dimensões planetárias concernentes ao mercado, ao sistema financeiro, à
informação, à tecnologia e à reinvenção de novos processos identitários, mas
também às formas de gestão das políticas responsáveis pelos territórios
urbanos, caracterizados pelas idiossincrasias dos espaços locais, onde se dão
os confrontos das culturas e das diferenças sociais. Zygmunt Bauman afirma que “A globalização
tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são
idênticas às que promovem a uniformidade do globo. (...) O que para alguns
parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é
sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejável e cruel”.
O mais preocupante para a maioria das populações e para os gestores de grandes
e médios centros urbanos é que, no dizer de Bauman, “Ser local num mundo
globalizado é sinal de privação e degradação social”[3].
A fragmentação do conhecimento, instituindo a
ultraespecialização como panaceia para todos os problemas, nada mais fez do que
gerar uma inteligência tecnocrática incapaz de enxergar a si mesma e, por isso,
perdeu a noção do todo. Como afirma Morin: “Infelizmente, quanto mais temos
conhecimentos especializados e limitados, mais temos ideias globais
absolutamente estúpidas sobre a política, o amor ou a vida”[4].
A inteligência tecnocrática se expandiu para todas as áreas.
Na medida em que a política engendrou, mais intensamente, a dimensão utilitária
do tecnicismo, maior se tornou a sua incapacidade de resolução dos problemas,
pois o tecnicismo que permeou a ação política criou um movimento de regressão
de sua competência democrática. Aliás, quanto mais a fragmentação do conhecimento
foi incorporada pelos sistemas e a supervalorização das expertises foi defendida como condição sine qua non para encontrar as soluções e resolver os problemas em
todos os campos da sociedade, tanto mais têm regredido os espaços da democracia
e, paradoxalmente, a nossa capacidade de encontrarmos saídas para as questões
maiores que afligem a sociedade e desumanizam os seres humanos.
Cada vez mais, é reforçado o pensamento de que necessitamos
de um conhecimento hiperespecializado para resolvermos os problemas que
enfrentamos nos mais diversos contextos do nosso cotidiano. Desse modo, temos a
sensação de que estamos muito preparados para enfrentarmos as nossas
problemáticas e darmos contas de suas respectivas resoluções. O sentimento de
que somos muito bons para resolvermos questões pontuais, específicas, que geram
crises circunstanciais e exigem da gente um conhecimento hiperespecializado
parece um ledo engano.
Isso tudo tem muito mais a ver com a história de jogar o lixo
para debaixo do tapete. Estamos cada vez mais afundando o planeta numa crise
infindável, tanto socioambiental quanto ética, mas continuamos abrindo garrafas
de vinho para comemorarmos a solução do problema da esquina que nossa tão
especializada competência conseguiu sanar, e nos autoelogiamos como
salvacionistas da Terra. Como afirma Edgar Morin, “contrariamente à opinião
hoje difundida, o desenvolvimento das aptidões gerais da mente permite o melhor
desenvolvimento das competências particulares ou especializadas. Quanto mais
desenvolvida é a inteligência geral, maior é sua capacidade de tratar problemas
especiais”[5].
A fragmentação do conhecimento e o esgarçamento das relações
nos atingem diretamente, e de maneira danosa, em todos os momentos de nossas
vidas. Como resultado, mergulhamos num processo de desqualificação do humano e
estamos, cada vez mais, nos coisificando. Como a escolha feita pelo personagem
Neo, no filme Matrix, ao optar pela pílula vermelha, é mais que urgente apertar
o sinal vermelho que nos fará reabrir possibilidades para nos reconhecermos no
nosso mundo interior e no mundo social, como sujeitos de história, de cultura,
de afeto e de espiritualidade.
O esgarçamento e a fragmentação do conhecimento, resultando
num processo de exigência da superespecialização, estão fazendo com que
percamos, aceleradamente, o senso de equipe no cotidiano de nossos trabalhos. O
que fazemos é o mais importante porque tem início e fim em si mesmo, é desse
modo que vemos a nossa ação e o resultado do que produzimos. Somos muito mais
uma babel que perdeu o sentido de unidade na diversidade e, com isso, perdemos
também o sentido de nossa tarefa no coletivo. A competividade de um contra o
outro ganha mais espaço, e tudo vira um salve-se quem puder. A nossa formação
educacional e, mais fortemente, a nossa formação profissional nos ensinam a
competir contra o outro. Isso tudo tem gerado uma deformação do verdadeiro
papel social da educação e de nosso papel político-social na sociedade. Por
essa razão, a nossa maior urgência, talvez seja repensar as políticas e os
sistemas educacionais, perguntando-nos que educação estamos fazendo e qual
educação queremos e precisamos, se, acaso, ainda desejamos, muito mais do que
viver, existir neste planeta.
(Nelino Azevedo de Mendonça)
[1]
MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São
Paulo: Cortez, 2013. p. 61
[2]
MORIN, Edgar. Os sete saberes
necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO,
2011. P. 22
[3]
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999. p. 8.
[4]
MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São
Paulo: Cortez, 2013. p. 67.
[5]
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 21,22